#14: Para aqueles que fazem de todo trauma uma boa ficção
"And here's to you 'cause forgiveness is a nice thing to do... - Hahaha, I can't even say it with a straight face! (This is why we can't have nice things - Taylor Swift)
Eu não convidaria minha eu do passado para um café.
Tenho visto muita gente fazendo essa trend do tiktok e apesar de achar a maioria engraçadinha, sou versada o suficiente em séries de ficção científica para saber que reencontrar alguém no passado é mudar para sempre o futuro. E não é que meu presente seja a melhor das coisas, nem é que eu acredite que tudo o que passei me fez quem eu sou hoje. Provavelmente eu seria quem sou independente do que aconteceu, mas menos traumatizada. E por mais que essa ideia (de ser menos traumatizada) seja maravilhosa, eu não teria coragem de contar metade das coisas que passei para o meu eu do passado.
Eu mal tenho coragem de contar certas coisas em terapia, veja bem.
Mas essa trend me fez pensar por muitos dias, enquanto os vídeos e fotos passavam no meu feed nas redes sociais. Na psicanálise, a gente costuma dizer que a memória tem estrutura de ficção, que é só um jeito meio poético de falar que a gente tende a revisitar o passado com olhos filosóficos, na busca de um sentido que talvez nunca tenha existido antes, criando histórias para elaborar traumas, transformando dores em risadas para se proteger de feridas que ainda existem, mas a gente não quer muito ter a ver com aquilo.
Se não estamos duvidando do que aconteceu – será que foi exatamente assim mesmo ou eu tô ficando louca e piorando as coisas, só para não parecer que eu fui filha da puta e tive minha parcela de erro? – estamos pensando na parte boa de uma tragédia. Perdi o emprego, mas consegui um melhor. Terminei um relacionamento, mas me livrei de uma cilada pro resto da vida. Aquela melhor amiga? Sabe como é, as vezes as pessoas se separam mesmo, mas isso não apaga que ela foi minha melhor amiga por anos. E nessa estrutura de ficção tentamos ignorar o meio da história, aquele engodo que a gente as vezes não suporta nem em livros de romance, em que choramos, sofremos, não conseguimos sair da cama, mal queríamos tomar banho. Por aquela besteira? Damos uma risada na roda de amigos, balançamos a cabeça e brindamos a vida – essa que continua e nos força a ressignificar grandes dores para poder seguir em frente.
Isso não é ruim, necessariamente. Na verdade, é apenas o nosso famigerado instinto de sobrevivência. Eu que convivi com a depressão entre 2016 e 2023, e que ainda vivo com o fantasma dela pendurado em meu ombro, acho isso incrível, sim. Pensar no lado bom das coisas foi uma coisa que eu tive que me treinar diariamente, como um soldado que sabe que tá indo para uma guerra que vai perder. Só que ver as coisas como aconteceu e entender que aquilo foi duro e difícil e desolador e aceitar isso – aceitar que fomos magoados para seguirmos em frente, para sabermos o nosso limite e o que iremos aceitar numa próxima vez de uma pessoa diferente – é tão libertador quanto contar histórias de superação para gente mesmo.
Por aquela besteira mesmo? Podem dizer os céticos. Por aquela besteira, sim. Afinal, quem tem que definir o que é besteira ou importante não é quem está escutando a história – e aqui entra também a sua versão do presente ao olhar para o passado, porque você também é uma pessoa diferente da que era ontem – mas quem viveu aquela história e a viveu na pele escamando e no sangue escorrendo que ninguém, além daquela pessoa, limpou.
E perdão a quem compra essa coisa meio capitalista meio liberalismo de que superação é história de quem vence. Pra mim, a história de superação é a maior ficção que a gente pode contar. A gente vende um passado cheio de efeitos de instagram em pleno 2025, e esquece dos rascunhos que a gente deixou salvo lá no finado twitter, com todos os impropérios que a gente não exporia em lugar algum. E tudo bem, sabe, tudo bem mesmo. Como eu disse, é uma forma de proteção que a gente tem com nossas próprias dores, com nossos próprios traumas, com a ideia que a gente compra ainda na infância e nunca mais revende, de que é bom demais ser a pessoa forte da situação, ser aquela que cai, mas cai atirando, que se fere, mas segue vivo.
Mas essa não é a única história. Porque a verdade mesmo, na maioria dos casos, é que sabe aquilo que aconteceu, que você achou que era o fim do mundo? Não foi! E que bom que não foi! É sério. Mas naquela hora foi, sim. Naquela hora, seu mundo acabou e uma parte de você morreu – as vezes é uma parte pequena, as vezes é uma parte grande, as vezes é quase a gente inteiro e a gente tem que se reconstruir pedaço por pedaço, como um quebra-cabeça de 2 mil peças. Você saiu viva daquilo, mas vamos sussurrar aqui, entre você e eu – e talvez entre você e sua psicóloga – mas a que custo? Será que negar que aquilo quase te matou é mesmo se mostrar mais fraco para quem está vendo, e isso é necessariamente ruim?
Ter sobrevivido a queda de um precipício é maravilhoso, de fato. Eu também sou uma sobrevivente e sei disso. Mas eu não acho que essa sobrevivência vale ignorar o que ou quem te deixou lá para morrer. Uma vez me disseram que sou muito rancorosa e talvez seja verdade. Talvez eu tenha sido muito bem-educada pela minha irmã mais velha Taylor Swift. Mas eu vou sempre defender que perdoar e esquecer são verbos diferentes por uma razão.
Como psicóloga, como lacaniana, como alguém que acredita que memória é a ficção em seu estado mais estrutural, eu acredito que contar pra gente mesmo que o que a gente passou – e ultrapassou – valeu a pena por causa de todas as outras coisas que veio depois, é só uma forma de milhares de outras formas de não nos jogarmos no buraco da depressão. Mas existem outras formas – e talvez a forma em que a gente se olha no espelho, nua, com aquela luz branca e chapada, encarando nossas cicatrizes como cicatrizes, e não como possíveis tatuagens floridas, seja uma forma mais autêntica e acolhedora com nossas próprias dores. Um abraço que a gente pode dar na gente mesmo – você passou por isso, você morreu por isso. Nada de bom veio por causa disso. O que veio de bom foi só uma tentativa sua de continuar viva, mesmo depois de morta. É sobre você sobrevivendo e não sobre seu trauma. É sempre sobre você, no fim das contas. Sem mas, sem mais.